Na sexta-série conheci um garoto de sombracelhas falhadas,calças puídas e identidade sexual duvidosa.
Três anos mais velho que eu tinha uma vida mais que agitada e uma ficha corrida admirável.
Era menino ainda quando num acidente perdeu seu irmão, seu melhor amigo e mentor. E por quem mantinha uma eterna devoção;
Dele carregava como herança um 3x4 na carteira um casaco de flanela xadrez, uma coleção de isqueiros velhos e a dor da falta;simbolizada por uma lágrima incrustada no canto do olho esquerdo, lágrima que não escorria, não secava e nunca ia embora.
Contudo, era uma pessoa doce, agradável e de um humor irônico que eu não vi em mais ninguém.
E eu me apeguei rapidamente a ele e seus segredos. Compartilhávamos o gosto pelas coisas simples, os pensamentos libertários e o prazer de nos sentirmos diferentes dos outros. Depois das aulas,as vezes no horário delas,íamos pra uma praça próxima e ficávamos conversando sobre quase tudo, música, astrologia, pais e mães, sonhos e pesadelos.
Em alguns momentos era o silêncio,eu e ele enfileirando os isqueiros no banco.
Nessas horas tínhamos a paz que nos faltava em casa.
Nos aceitávamos sem questionar ;
Nos ouvíamos sem sem julgar;
e sempre ríamos um do outro.
Quando minha vida começou a virar vida de "gente grande"e fechei os olhos com medo, ele me incentivou a abrir e encarar, crescendo como deveria ser.
Viramos dupla inseparável na escola dividíamos o lanche e a autoria de pequenas infrações, como esvaziar os pneus do fusca da professora de ciências.
Uma vez me disse que o meu sorriso o aquecia como um pequeno sol particular,que tinha medo de ficar dependente dele e que as vezes queria levá-lo pra casa.
E em resposta sorri,deixando claro que o amava.
Por ele tive o amor mais puro e desinteressado que senti por alguém, o amei pelo o que ele era, sem idealizar e sem querê-lo pra mim.
Mas tais declarações pararam por ali, de resto nos olhávamos, já sabíamos e era o suficiente.
Quando ele faltava à escola, oque era frequente, eu virava uma menina murcha e quieta encostada em qualquer parede.Nesses dias, eu ia dormir assim que chegava em casa,acelerando a chegada do dia seguinte.
Mas um dia eu dormi demais e perdi a hora, e quando acordei eu já tinha mais idade,um filho e novas responsabilidades.
E aquele garoto tinha ido embora, sem deixar pistas, nem um bilhete dizendo oque fazer agora.
E eu nunca mais soube dele e de suas botas manchadas.
De vez em quando me pego pensando nele, com saudades dessa amizade que ficou perdida no passado, entre a escola, a praça, nas ruas de um condomínios na barra da Tijuca.